Wednesday, June 28, 2017

Conceitos sobre Mobilidade e Acessibilidade*

Agradeço sua lembrança de enviar-me cópia da Lei que aprova o Estatuto do Pedestre da Cidade de São Paulo. Recentemente, um repórter da GLOBO me ligou para saber minha opinião a respeito dessa Lei. Disse-lhe que não conhecia o texto e, por isso, não podia opinar. Porém, se ele me a enviasse por e-mail, eu lhe falaria a respeito na tarde desse mesmo dia. Fiquei feliz porque ele me enviou a Lei; e não me ligou!

Li-o e realmente não entendi seu significado, pois o que não falta é legislação sobre calçadas e trânsito. E não será legislação ou preces que tornarão nossas cidades mais seguras e confortáveis para o cidadão que nelas circulam, particularmente andando a pé. A cultura de exageros legiferantes em qualquer uma das três esferas de Governo estimula a ação de seus membros em criar leis e mais leis na expectativa de que elas resolvam todos os problemas de nosso país. A maioria fica nas prateleiras empoeiradas do setor público.

O pedestre, cuja sina acompanho nesses 36 anos de vida da Associação Brasileira de Pedestres-ABRASPE, salvou-se do crescente número de mortes por atropelamento daquela época - se não me falha a memória, no início dos 80 morriam na Cidade de São Paulo, 1.500 pedestres atropelados por ano - graças ao trabalho de profissionais de trânsito competentes e pressão social da população que tomou consciência que acidente de trânsito no Brasil não é acidente, mas tragédia previsível dadas as condições propícias para que os atropelamentos e suas consequências sejam fatais. O novo Código de Trânsito Brasileiro de 1.988, associado ao controle de velocidade por radar e, mais recentemente, a lei e o controle efetivo de evitar que pessoas alcoolizadas dirijam, eliminaram a ação desses fatores de alta relevância para se reduzirem as mortes no trânsito, incluindo as resultantes de atropelamentos.

O que mais torna a vida do cidadão a pé em nossas vias públicas um risco de vida ou de aleijamento por atropelamento é a velocidade excessiva em nossas vias públicas e o fato dele não ser visto à noite pela falta de material refletor em suas vestes que permitam o motorista frear o veículo a uma distância adequada a evitar o acidente. Na Europa já se adotam os limites de 50 km/hora nas arteriais e 30 km/hora nas locais. Não basta, porém, uma lei ou decreto para garantir o respeito a esses limites. Como todo cidadão, ando a pé. E como a grande maioria em condições de ter um automóvel, também dirijo. A não ser nas poucas vias sinalizadas com placas especiais em locais, como por exemplo, hospitais e escolas, não se tem a mínima ideia quais são as vias em que a velocidade de 30 km/hora deva ser respeitada. Se as vias arteriais são bem iluminadas, sinalizadas e fiscalizadas inclusive com radar é de se esperar que o limite máximo de 50 km/ hora seja obedecido. Porém, quase sempre congestionadas em longos trechos, as arteriais até dispensam tanta preocupação, pois ninguém consegue nelas andar a essa velocidade. Contudo, quando o motorista tenta fugir do congestionamento, utilizando como rota de fuga uma via local, o limite de velocidade torna-se arbítrio dele. Despojadas de farta iluminação, faixas de pedestre, radares e todo o aparato de controle de velocidade, ele escolhe a velocidade que lhe agrada e lhe é segura, atormentando pedestres e animais nessas vias locais. Qual a consequência disso, pouco se sabe!.

Até hoje, infelizmente, não se tem estudos e pesquisas científicos sobre os fatores reais determinantes de atropelamentos fatais ou de aleijamento na Cidade de São Paulo. O Governo do Estado de São Paulo desenvolveu um projeto conhecido como INFOSIGA que fornece informação sobre o local e a hora do acidente com vítima que permite a realização de estudos e pesquisas mais amplos e profundos que permitirão se conhecerem os fatores determinantes dos acidentes de trânsito. Cabe agora às instituições de pesquisas universitárias - principalmente das públicas financiadas com recursos públicos - participarem dessa verdadeira luta de tornar os acidentes de trânsito analisados cientificamente como já se faz há muito tempo em universidades e institutos de pesquisas estrangeiros, desvendando as causas reais de sua ocorrência. 

Quanto ao Estatuto do Pedestre, confesso que apreciaria mais uma consolidação das tantas leis e decretos já aprovados que se superpõem uns aos outros. O que se recomenda e se considera mais urgente para os senhores vereadores é agir politicamente para que se integre o planejamento de uso e ocupação do solo, maior causador de congestionamentos e incompatibilidade de espaços adequados com as necessidades do cidadão que anda a pé, com o planejamento de trânsito. A dissociação entre uso e ocupação do solo e trânsito é gritante. Eu diria, assustadora sob todos os aspectos para nós cidadãos, particularmente das cidades grandes.

Se corredores e elevadores de edifícios são partes integrantes de sua construção, manutenção e operação, seja como resultado de normas técnicas, seja porque cidadãos inteligentes jamais comprariam um imóvel em condomínio que não lhes garantissem acesso seguro e confortável a seu apartamento ou conjunto comercial, é surpreendente que esse mesmo cidadão continue caindo na armadilha de viver em local que não lhe proporciona acesso seguro e confortável aos bens e serviços que lhes são imprescindíveis para viver sem que tenha de percorrer longas distâncias e dispender muito tempo em congestionamentos..

Estive recentemente transitando de automóvel em colinas da Cidade de São Paulo próximas do Parque Burle Marx e fiquei assustado. Enormes prédios se desdobram em avenidas com intenso tráfego local, dando a nítida impressão de corridas longas e tensas em busca de destinos que garantam a sobrevivência e bem estar de seus moradores. Não vi nenhum pedestre, salvo o que me pareceu ser uma empregada doméstica esperando ônibus de alguma linha deficitária circulando por ali.

Contrária à sustentabilidade de nosso planeta, a mobilidade se tornou modernamente em algo muito desejável em si. Lembro-me, vagamente de índice de desenvolvimento proposto por Wilfred Owen, na década dos 70 ou 80, vinculando o aumento do bem estar da população a um índice de mobilidade motorizada! Por outro lado, reservou-se mais recentemente o conceito de acessibilidade somente a obras e serviços especiais que facilitem pessoas com dificuldade de andar a pé devido a restrições temporárias ou permanentes. Na realidade, o conceito de acessibilidade se aplica a todos nós com dificuldade ou não de se locomover para alcançarmos pessoalmente e nos apropriarmos de produtos e serviços imprescindíveis a nossa sobrevivência na sociedade em que vivemos. A mobilidade é um meio para se alcançar pessoalmente aquilo que necessitamos e desejamos. A mobilidade isoladamente perde seu sentido. Ela deve ser garantida a todos os cidadãos, indistintamente, tenham eles limitações ou não em se locomover. A mobilidade é condição necessária para que se tenha acessibilidade, sendo esta, porém, o objetivo último do deslocamento que sempre busca alcançar alguma coisa. Aos que apreciam flanar ou se mover no espaço urbano sem rumo, que o façam a pé. É mais seguro, mais saudável, mais gratificante e menos poluidor e perigoso para a sociedade. 

É um fato inegável que transporte motorizado é uma atividade econômica e social que produz efeitos negativos no meio ambiente como ocupação de grandes espaços públicos, poluições sonora e atmosférica, obstrução visual, risco de acidentes, sendo fundamental, portanto, que se reduza ao mínimo possível para atender as necessidades de produção e de serviços à população. Portanto, o objetivo das autoridades públicas não é garantir mobilidade a qualquer custo. Muito menos, motorizada. No estágio de desenvolvimento da Cidade de São Paulo e de nosso País, cuja população se torna cada vez mais consciente dos males do desperdício e da poluição que afeta nossa saúde e a própria sobrevivência da humanidade em nosso planeta, o que se deve cuidar é de garantir acessibilidade com o mínimo de mobilidade. E, sempre que possível, dando preferência à mobilidade não motorizada. E esta, quando imprescindível ao transporte do cidadão, desde que justificável economicamente, por veículos de transporte público..

Quando se citam dados sobre o fato de que aproximadamente 1/3 das viagens feitas na Cidade de São Paulo são feitas totalmente a pé, exagera-se esse fato ao não se mencionar o pouco que isso representa sobre o total de quilômetros que somos obrigados a percorrer em veículos motorizados nas cidades grandes para sobreviver. E ignora-se, por outro lado, que quase todas as viagens em transporte público são antecedidas e terminadas a pé. Muitas vezes, percorrendo-se longas distâncias, também no interior de estações de metrô e trem, e até mesmo em terminais de ônibus.

O uso do automóvel também exige que se ande a pé, porém, percorrendo distâncias "caseiras". Contudo, o conforto da viagem entre garagens sem exposição a intempéries e com controle de ruídos e poluição externos associado à sensação de que se está circulando no interior de um espaço pessoal, transforma o andar a pé em verdadeiro pesadelo para seu usuário. Seu uso indiscriminado, é bom registrar, gera ônus hoje totalmente financiados pelo setor público e suportados por toda população, sem exceção, porém mais intensamente pelos que mais permanecem junto às grandes avenidas. A ocupação de espaço, poluições sonora e atmosférica, obstrução visual e acidentes  são bem superiores por pessoa transportada em comparação com o transporte público. Como não existe justificativa de se considerar o uso de automóvel como imprescindível ao cidadão, não há razão para que não se lhe imponha uma tarifa por quilômetro rodado a fim de cobrir os custos gerados por sua circulação, evitando-se a proibição, pura e simples, que não leva em conta as particularidades presentes em qualquer sociedade livre e democrática. Como exemplo, já com idade avançada,  eu necessito de carro pequeno e simples que me atenda em situações especiais como, por exemplo, dias muito frios e chuvosos, acesso a pronto socorro e hospitais, transporte de minha esposa com falta de tônus muscular para acessar e andar dentro de veículos de transporte coletivo. A radicalização que pressupõe a proibição pura e simples do uso do automóvel particular, além de infantil, não resolve o problema maior do congestionamento, do financiamento dos investimentos em infraestrutura viária e todos os serviços nela integrados (iluminação, sinalização, fiscalização, operação, e tantos outros)** Prioritárias.....

Somente dessa forma reunimos os objetivos de eficiência e eficácia do transporte motorizado ao de sustentabilidade ambiental e social em nosso país, liberando recursos públicos para serviços mais urgentes nos setores de saúde, educação, segurança, saneamento e moradia social.

* E-mail em resposta ao eng. José Tadeu Braz que nos enviou cópia do Estatuto do Pedestre.
** Vide parte final do penúltimo BLOG: Medidas Prioritárias....                                                                                                                               SP. 26/06/2017
                                                                         FIM