Wednesday, July 18, 2007

O MAIOR DESASTRE AÉREO DO BRASIL

UM MORTICÍNIO CULPOSO

E. J. Daros

Pode-se afirmar, sem dúvida, que as duas centenas de pessoas que morreram ontem com a batida e incêndio de avião da TAM em seu próprio prédio na Avenida Washington Luís, após derrapar na pista do Aeroporto de Congonhas ao lado, não foram vítimas de terroristas, de assassinos, de piloto ou passageiro suicida ou de psicopata livre atirador a bordo do avião. Também, pode-se dizer que não se trata de acidente, isto é, de desastre resultante de circunstâncias imprevisíveis sobre as quais não temos controle.

Assim como nas mortes causadas em nossas rodovias pode-se agrupar os fatores responsáveis por elas, em três categorias: nós humanos que conduzimos, ocupamos e estamos perto da aeronave; a própria aeronave; a infra-estrutura aérea, envolvendo as pistas, a sinalização e seus controles, bem como as aerovias e também seus controles. Não devemos esquecer, contudo, o que não se considera, ou pouco se fala, a cultura nacional que envolve tudo isso. Nossos valores e maneiras de viver e ser que estão presentes, em maior ou menor medida, na qualidade da segurança em que se formam ou produzem, organizam-se e operam as três categorias acima referidas. Obviamente, na produção da aeronave pouco é nossa influência cultural, salvo em certas escolhas que o próprio fornecedor permite que se façam. Mesmo nelas, a presença de nossa cultura aparece na manutenção e, principalmente, na operação das aeronaves. Ainda que os padrões de segurança na aviação civil estejam se tornando cada vez mais padronizados internacionalmente, a margem de influência da cultura nacional é muito grande.

Depois do desastre, vão ser pesquisadas suas causas cientificamente, pois mesmo que fosse um acidente, isto é, fenômeno decorrente de causas imprevisíveis, a imprevisibilidade desaparece e dá lugar aos fatores que realmente o causaram, isolada ou combinadamente. No Brasil há uma tendência de se exagerar na responsabilidade do chamado fator humano. Se um carro derrapa e tomba, e não ficar bem claro que a velocidade do veículo estava de acordo com a regulamentada; que as ranhuras de seus pneus eram o suficientemente profundas; que as condições climáticas eram boas; somente então se examina com mais rigor a condição da via. Não é por acaso que a maioria dos acidentes no Brasil é atribuída a falhas humanas, até por que em muitos casos o condutor morto não tem condições de se defender.

Na Suécia se adotou a política de ZERO mortes em acidentes de trânsito. O fato de o condutor errar não deve simplesmente tranqüilizar as autoridades de trânsito ao ter um culpado pelo acidente, como se tudo decorresse somente de seu erro. Ao contrário. O objetivo dessa política é compensar os erros do condutor por meio de medidas de segurança na via e no veículo que possam impedir a perda de vidas. A aviação civil persegue esse objetivo e, seguramente, serviu de inspiração para a política adotada na Suécia.

O ocorrido ontem nos parece mais um morticínio culposo que propriamente um acidente. Senão vejamos. Há décadas se fala na inadequação da localização do Aeroporto de Congonhas. Pressões de todos os lados, porém, defenderam e defendem sua permanência e, o que é pior ainda, sua ampliação. Governos Municipal, Estadual e Federal ora se estranham entre si, ora se harmonizam, na grande empreitada de modernização de CONGONHAS. A aviação executiva considera-o imprescindível e a elite empresarial sempre apoiou e exigiu um Congonhas ali no meio do tecido urbano para atender suas necessidades. “Afinal, toda cidade moderna e de características mundiais como São Paulo tem de ter seu aeroporto central”, fala grosso a elite paulistana. Mais recentemente, devido aos congestionamentos e aos riscos de banditismo em nosso meio urbano, essa mesma elite tornou-se responsável pelos vôos de helicópteros que invadem o espaço aéreo da cidade, produzindo poluição sonora e colocando em risco sua população. Nós passageiros temos ojeriza por Guarulhos. E temos razão para isso. Demasiado tempo de acesso por falta de transporte público rápido e barato como nas grandes cidades do mundo. Até o ônibus executivo mantido pelo governo estadual é dispendioso. Sairia mais barato dividir uma corrida de táxi ao velho estilo do lotação. É proibido, porém.

Somente os moradores próximos odeiam o aeroporto cujo barulho afeta toda a população da região e da própria cidade nas rotas de aproximação. O que se pode dizer do Aeroporto de Congonhas é que tudo contribui para sua insegurança face ao tráfego aéreo nele permitido. Já que os aviões são seguros, considerando que sua manutenção é vigiada pelos próprios fabricantes para evitar dúvidas sobre isso, pesa sobre os ombros do piloto e co-piloto e de controladores de vôo, toda a responsabilidade para corrigir a insegurança quase sempre presente em Congonhas. Há poucos dias derraparam várias aeronaves. Liberou-se a pista principal sem estar terminada. Permitem-se pousos e decolagens acima do limite ideal de segurança. Desrespeita-se a lei de silêncio, prejudicando a população da região onde moram, também, velhos, doentes, bebês e crianças em idade escolar. Permite-se a presença de posto de gasolina e de material altamente inflamável a poucos metros das pistas do aeroporto. Liberou-se a construção de prédios para atender as necessidades da aviação executiva na área do próprio aeroporto. Uma rápida visita a essa área e a suas cercanias colocaria o cabelo de especialistas em segurança aérea em pé.

Pode-se afirmar que autoridades municipais, estaduais, federais e amplos segmentos da sociedade civil organizada na Cidade de São Paulo, imersos em nossa cultura fatalista garantidora de que somente se morre quando Deus determina, são responsáveis pela matança de ontem. Trata-se de um morticínio culposo que nos envergonha perante a comunidade internacional civilizada. Vamos aguardar os resultados da investigação sobre as causas do desastre previsível e anunciado por muitos. Infelizmente, nesse caso específico a previsão foi mais segura que a do tempo feita pelos meteorologistas.

FIM